"Peguei um Ita no Norte, e vim pro Rio morar ..." e Dorival contempla nostálgico o navio que talvez o
tenha trazido da Bahia ...
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Dorival Caymmi é um acontecimento na música popular brasileira. O cronista e compositor Antônio Maria diz que só deixará de falar nele “quando morrer” ... E todos nós gostamos desse poeta do nosso mais puro folclore ... (Reportagem de Zenaide Andréa e fotos de Kásmer)
“Quem quiser vatapá ... que procure fazê, primeiro o fubá, depois o dendê ...”
Parecia estarmos em plena Bahia, com todo o doce feitiço que emana da sua gente, das suas festas mais típicas, e de todas aquelas crendices que tão fundo marcam a alma do seu povo. Era a saudade que falava alto e sonoro, contando a noite, o vento, a aventura dos saveiros pelos mares de Castro Alves, a história do casario colonial, a solidão do Pelourinho “quando a madrugada purifica e salva o homem que a ladeira cansou, que a vida tentou matar” — conforme disse mesmo Antônio Maria, autor do texto do show que nos deu toda essa impressão, lá na boate Casablanca.
Ao seu lado, a incomparável Ângela Maria, indiscutivelmente a nossa maior cantora no gênero, e outra figura feminina que se Impõe nos nossos meios artísticos: Tereza Austregésilo, que interpreta, em gracioso “travesti”, um personagem das ruas de Salvador, o poeta “Cuíca de Santo Amaro”. Há, também, o jovem ator Paulo Maurício (que já viveu na tela o tipo do cantor de “Espumas Flutuantes”) e unia porção de garotas bonitas e bastante harmoniosas com o ritmo dolente que nos vem, assim, da velha Tomé de Souza ...
Carlos Machado, sempre gentil e interessado em presentear o Rio com belas e novas emoções noturnas, faz parar um instante os trabalhos da representação, para que Dorival venha ao nosso encontro. As pequenas, porém, continuam a repetir os últimos versos que ele entoava, e a bambolear os quadris, como as pitorescas vendedoras das praças públicas de Salvador:
“Não pára de mexê, que é pra não embolá ...”
Caymmi começa, então, a conversar conosco. São flagrantes de sua existência, fragmentos de suas inúmeras lembranças, que lhe acodem naturalmente à memória, nesse instante em que lhe pedimos um pouco do seu destino, para narrar aos nossos leitores... Ele é uma dessas vocações autênticas, absolutamente sinceras, e, como tal, não costuma falar muito de si mesmo. Prefere dizer de suas alegrias ou de seus dissabores cantando, ou compondo, “O Mar”, “Marina”, “O que é que a baiana tem” etc, e, agora, esse fatalista samba-canção que andou já na boca de toda gente: “Não tem solução”...
— Qual, dentre as músicas que fez, é a sua predileta? — indagamos, após recordarmos alguns dos seus maiores sucessos.
— Não tenho preferências, nesse sentido. Para mim, todas se parecem e estão no mesmo plano. O povo é que escolhe ... Por último, acho que preferiu, por exemplo, o “Nem eu” e “Não tem solução”, este feito de parceria com Carlos Guinle.
— E como escreve as suas músicas? Tem algum lugar ou hora especial, para isso?
— Faço-as a qualquer momento, em qualquer canto. Mas, geralmente, trabalho em casa.
Como se sabe, Dorival é casado com a cantora Stel Maris, que abandonou as suas atividades profissionais (na Mayrink Veiga, onde esteve por um ano, e isso depois de surgir vitoriosamente como amadora) pelas obrigações do lar. O casal possui três filhos, Dorival, Danilo e Nana, que constituem o encanto dos Caymmis e dos quais ele nos fala com o mais grato e espontâneo entusiasmo.
Tínhamos sabido que se cogitava de uma reedição do “Cancioneiro da Bahia”, a notável compilação de Dorival, com prefácio de Jorge Amado e ilustrações de Clóvis Graciano. O “cantor das graças de Iemanjá” confirmou a informação — o que é especialmente interessante para quantos apreciam o nosso folclore, e ainda não dispõem desse volume, como é o nosso caso — e acrescentou:
— Será completada pelas minhas novas canções.
A seguir, passamos a tratar de cinema e teatro. Dorival fez parte da representação de “Joujoux e Balangandans”, levada à cena no Municipal há alguns anos, conforme devem recordar os que nos leem. E na tela ainda pela mão do escritor Henrique Pongetti, o responsável por aquele espetáculo, apareceu no “short” “A jangada voltou só”, de Ruy Santos, tendo ainda figurado noutro filme de valor, “Estrela da manhã”, com “script” de Jorge Amado, para a Filmoteca Cultural.
Hoje, porém, dada a intensidade do seu trabalho, na boate da Praia Vermelha, no rádio e na Televisão Tupi, nesta capital e em São Paulo, e às suas gravações e outros misteres correlatos, Caymmi não dispõe de maior tempo para devotar aos estúdios cinematográficos e ao palco. Aliás, em relação ao teatro, embora elogiando o que Pongetti dele conseguiu àquela ocasião a que nos referimos, afirma ter desistido por completo.
Cremos que a sétima arte também não o atrai muito, a não ser como espectador, talvez. Seu gosto pelas coisas da Bahia e o seu amor sem limites pela música que compõe e que canta, são, em definitivo, as “constante” de seu temperamento. Fora disso, tudo o mais será paisagem, para ele — e não a imorredoura sensação da paisagem de Itapoã ...
Dorival nasceu em 30-4-1914. Seus cabelos vão já grisalhando, mas sua face é límpida e sem rugas, com um ar de candura satisfeita, que lhe deve vir da infância livre e descuidada, lá pelas terras cheias de sol da sua querida Bahia...
Tem já o seu nome numa praça de Salvador, na qual cantou para uma grande multidão, que o aplaudiu delirantemente. Não há quem não goste dele. E Antônio Maria escreveu que só deixará de falar de Caymmi, quando morrer ... Nada mais justo e compreensível, acreditem.
Fonte: Cinelândia, edição 24, novembro de 1953 (Rio Gráfica e Editora)