Hoje, a música popular brasileira, embora nem sempre legítima, mesmo perdendo sua característica rítmica, aquele sabor de simplicidade que a põe facilmente no cantar das ruas, está nas Europas, nos States, no mundo. Mas nos fins do século XIX e ainda no princípio deste, subestimada, tida como espúria, ficava contida na classe inferior, não sendo de bom tom alguém declarar apreciá-la.
Claro que ela existia a despeito do esnobismo dos da alta, do menosprezo da gente chique. E nos muitos cabarés e cafés-cantantes do velho Rio, entre as cançonetas trazidas pelas
chanteuses gommeuses ou
chanteuses comiques, sempre havia uma patrícia nossa (ou patrício) cantando lundus, tanguinhos, chulas e maxixes.
A brasileira Plácida dos Santos, que, em 1895, se apresentava no Eldorado, do Beco do Império (atual Rua Teotônio Regadas) na Lapa, e que por ser de boa família se anunciava como Mme. Plácida, era uma dessas patrícias. Ali, com o cançonetista Mr. Brunet e Miss Josephine Bracesco,
célèbre charmeuse des serpents, interpretava bem à brasileira, dengosa e provocante, canções de franco agrado dos frequentadores. Entre os vários números que compunham seu repertório sobressaía-se um que, por isso, era posto em destaque no noticiário dos jornais: “Sucesso indescritível de Mme. Plácida na apetitosa
Mazurca”.
Rumo a Paris
Poucos anos depois, quando estava atuando no Teatro Santana (no local onde agora está o novo Teatro Carlos Gomes), Dzelma, cançonetista da Martinica, que fazia parte do elenco, despertou-lhe o interesse de uma viagem à Europa. Constatava todas as noites o êxito das apresentações de Plácida e sugeriu-lhe:
— Você, com essa voz e com essa plástica, se fosse a Paris arranjaria fortuna.
Não só a
Mazurca, que continuava no seu repertório, mas os graciosos tanguinhos e lundus empolgariam os parisienses, dar-lhe-iam muitos francos, a fortuna que Dzelma lhe assegurava. Encorajada pelas palavras da colega, sem estar presa a contrato rígido, resolveu “fazer a Europa”. Correu a um comprador de móveis, levou-o ao quarto de aluguel onde morava na Rua Bela de São João e, pelo preço que lhe foi oferecido, liquidou os trastes. Uma semana após, com pequena mala como bagagem, embarcava no
Ville de Pernambuco, da Chargeurs Réunis — a companhia que lhe proporcionara passagem ao alcance de seu pouco dinheiro — e foi-se rumo a Paris. Levava a decidida vontade de triunfar, mostrando ao Velho Mundo canções brejeiras.
No Follies Bergères
Em Paris, com a reserva econômica de apenas uma libra, viveu em aperto até conseguir a cobiçada fortuna que a cantora da Martinica lhe sugerira àquela noite no camarim do Santana. Hospedou-se num modesto hotel da Rua Doux e, no dia imediato, visitou o redator teatral do Gil Blas, mostrando-lhe um álbum de atividades artísticas e fazendo uma demonstração de algumas canções de seu repertório. Dessa entrevista, realizada no francês que ela aprendera num colégio de religiosas, resultou breve registro na edição do dia seguinte. Na notícia em questão era também anunciada a participação de Plácida dos Santos num festival de caridade a ser realizado no Embassateur, em cujo programa o jornalista teve a iniciativa de incluir o nome da cantora brasileira.
Na noite do espetáculo, tímida, mas confiante, pois a grande atração do programa eram os famosos cançonetistas Poilis et Thérèze, Plácida procurava vencer o nervosismo. Seu aparecimento em cena causou primeiramente o espanto da platéia, visto ser esperada a presença de uma
chanteuse créole, como divulgara a publicidade, querendo denunciar influências africanas nas canções brejeiras que seriam apresentadas. Plácida, porém, venceu imediatamente a surpresa e, assim que cantou, segura do desempenho, dando todo calor brasileiro aos números escolhidos, as palmas e até alguns bis lhe asseguraram que se impusera como desejava.
Do êxito desse primeiro contato com o público parisiense resultou logo ser contratada para uma temporada no Follies Bergères. E no palco onde tantas estrelas internacionais já se haviam exibido, Plácida, dançando um
maxixe brésilienne, cantando com vivacidade lundus e tanguinhos nos quais intercalava o
argot das ruas para que o público os sentisse na simplicidade de seus versos, assegurou a vitória almejada. Com ela, também vitoriosamente, a música popular brasileira chegava pela primeira vez à Europa na sua legitimidade característica.
Aos 70 e com 18
Muitos anos passaram. Plácida dos Santos — que voltara ao Brasil, depois de sua estada em Paris — em 17 de maio de 1900 estreava no Alcazar Parque. Nessa casa de diversões, da mesma Rua Teotônio Regadas, 77, também conhecida como Alcazar Fluminense, no mesmo lugar em que antes funcionara o Eldorado, ela, Geraldo Magalhães e Jenny Cook eram os grandes cartazes. Dali transferiu-se, em 1903, para Jardim-Concerto Guarda Velha, na Rua Senador Dantas, 57, no qual a célebre Suzanne Casteras tinha as honras de grande
étoile française. Nesse mesmo ano, em dezembro, quando a Casteras realizou sua festa artística no Teatro Casino (Rua do Passeio, 44), Plácida participou do programa e, como vinha acontecendo após o seu regresso, apresentavam-na: “Uma brasileira que já fez furor em Paris”.
Vitoriosa, Plácida achou que podia encerrar sua carreira artística. Então, com dois festivais de despedida, o primeiro no dia 7 de janeiro de 1910, no Teatro Apolo, o segundo a 3 de outubro do mesmo ano, no Cabaret-Concert, Rua Senador Dantas, 104, Plácida dos Santos deixava o palco gloriosa. Fazia-o com o orgulho de poder dizer, como o fez, em abril de 1933, quando um repórter de
A Noite Ilustrada a entrevistou:
— Fui eu quem primeiro cantou em Paris a música brasileira!
Não avançava na afirmativa além de Paris, sabendo, certamente, que o padre Domingos Barbosa antes já havia cantado em Lisboa modinhas brasileiras (“Sobem nas asas dos ventos/ As modinhas brasileiras”). Estava com 70 anos, os quais declarou sem constrangimento ao jornalista, que se surpreendeu com a jovialidade da entrevistada (“uma senhora idosa, de excelente humor, olhos ainda iluminados e dentadura alva e perfeita”). Mas, como querendo arrefecer o espanto do entrevistador, que a descobrira em Ipanema, ajuntou com um sorriso:
— Setenta de idade. O espírito, porém, ainda não completou 18.
Jornal do Brasil, 01/05/70
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira - Volume 2 / Jota Efegê. -
Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary
Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.