domingo, outubro 01, 2006

Deixa Falar, a primeira Escola de Samba

Oswaldo Boi de Papoula, 1o. presidente da Deixa Falar, ao lado de Ismael Silva.

“A gente precisava de um samba para movimentar os braços para a frente e para trás durante o desfile. A gente precisava de um samba para sambar.” A descrição é de Ismael Silva para justificar a novidade na criação dos compositores do bairro do Estácio de Sá, modificando a forma de sambas de sucesso na época, desde Pelo telefone, passando por Jura e Gosto que me enrosco, todos eles guardando ainda estreito parentesco com o maxixe.

Buci Moreira, sambista do primeiro time, ritmista famoso e morador do Estácio, citado pelo pesquisador Nei Lopes, dá outro testemunho valioso: “Minha mãe me mandou comprar manteiga na padaria e no caminho vi quatro camaradas reunidos cantando samba: o Zeca Taboca, um outro rapaz que o pessoal chamava de Brinco, o Edgar com sua camisa de malandro, e o Rubem, muito alto e com cara de grego. Estranhei a novidade e perguntei: ‘O que é isso?’ E disseram: ‘Isso é um samba moderno que o Rubem fez’.

E cada um dizia um verso de improviso.” Mano Rubens era irmão de Bide (Alcebíades Barcelos), autor de A Malandragem, o primeiro samba gravado de tal maneira. Isso acontecia em razão do aparecimento da Deixa Falar, a primeira escola de samba, assim chamada, do Brasil.

Era na verdade um bloco carnavalesco criado no dia 12 de agosto de 1928 no bairro carioca do Estácio de Sá. A sede improvisada ficava no porão da casa n° 27 da rua do Estácio, onde morava o fundador do bloco, Ismael Silva, líder dos sambistas do bairro.

Como nas imediações, mais exatamente no largo do Estácio, funcionava uma Escola Normal, que formava professores para a rede escolar, Ismael resolveu batizar seu grupo de Escola de Samba, já que formaria professores de samba. E a nova Escola já nascia com “corpo docente” da melhor qualidade, pois, além do próprio Ismael, participavam: Mano Aurélio, Nílton Bastos, Armando Marçal, Mano Rubens, Baiaco, Brancura, Heitor dos Prazeres, Mano Edgar e Bide.

A curiosidade em torno do nome sempre existiu e levou Ismael Silva, que o escolheu, a contar como foi em depoimento no Museu da Imagem e do Som, do Rio de Janeiro: “quanto ao nome, posso dar a explicação: havia uma grande rivalidade entre os agrupamentos de samba, Piedade, Estácio, Mangueira e outros. Cada um queria, naturalmente, ser o melhor e criticavam os outros. Saímos com esse nome, sabe como é, vamos para a frente, ou seja... ‘deixa falar!’ ".

Além de reunir jovens e revolucionários compositores do bairro, a escola pretendia melhorar as relações com a polícia, visto que, sem autorização, os sambistas não tinham direito de promover rodas de samba no largo do Estácio e nem desfilar no Carnaval. Por isso o grupo tratou logo de legalizar a situação, assumindo sua importância para a grande festa e na música popular brasileira.

O surdo e a cuíca, lançados pela Deixa Falar, tornaram-se indispensáveis na percussão do samba, e a influência de seus compositores se nota, de imediato, nas obras de autores como Ary Barroso e Noel Rosa, os primeiros ditos “urbanos” a abandonarem o estilo de Sinhô, para aderirem aos sambistas do Estácio.

Noel Rosa, que aliás tinha muito cuidado ao escolher seus parceiros, fez com Ismael Silva algumas composições. Ambos se completavam, mesmo com estilos de boêmia completamente diferentes, o mais intelectualizado de Noel, criado na burguesia da Vila Isabel, e o voluntarioso e rebelde de Ismael, cultivado na malandragem do Estácio de Sá.

Ismael se auto-retrata musicalmente em samba magistral, O Que Será De Mim?, criticado pelos moralistas e aclamado pela malandragem: “Se eu precisar algum dia / de ir ao batente / não sei o que será. / Pois vivo na boêmia / e vida melhor não há. / Não há vida melhor / e vida melhor não há / Deixa falar quem quiser / Deixa quem quiser falar. / O trabalho não é bom. / Ninguém deve duvidar. / Trabalhar, só obrigado; / por gosto ninguém vai lá”.

Um ou dois empregos de curta duração foram o suficiente para a vida inteira do sambista Ismael Silva. Sempre viveu do samba, que era o que ele sabia fazer de forma excepcional. O historiador Sérgio Cabral diz textualmente, por ocasião da morte de Ismael, em 1978: “Eu tenho uma opinião: o samba carioca só pegou sua forma definitiva por causa daquela geração de sambistas do Estácio, na qual Ismael Silva era um líder. Antes chamava-se de samba um tipo de música que tinha muito de maxixe. Quando o pessoal do Estácio de Sá começou a divulgar seus sambas, os compositores da época protestaram muito dizendo que aquilo era uma deturpação”.

O pesquisador José Ramos Tinhorão caminha na mesma estrada: “o samba vacilante de Donga, Sinhô e Caninha, da década de 20, ganhou no Estácio o ritmo batucado com a geração de compositores da camada mais baixa (Ismael Silva, Nilton Bastos, Bide, Armando Marçal, Heitor dos Prazeres)”.

Ao final de sua vida, Ismael tinha uma discografia que acumulava com raras regravações 85 títulos, a maioria deles hoje citados como básicos para a história da música popular brasileira. Navegou em parcerias clássicas como Não tem tradução (ou O Cinema Falado), com Noel Rosa, e Se você jurar, com Nilton Bastos e Francisco Alves, ou sozinho em grandes sambas como Antonico ou Tristezas Não Pagam Dívidas.

E, ao assistir a um desfile de escolas de samba, a pista iluminada, milhares de sambistas no asfalto, outro tanto aplaudindo nas arquibancadas, Ismael sorriu satisfeito: “Quando é que a gente podia imaginar que aquelas brincadeiras iam dar nisso? Uma coisa de esquina encher avenida? Hoje isso não é mais escola. É universidade, é academia, é faculdade, sei lá! E amanhã é a formatura do pessoal que estudou o ano inteiro. Colação de grau, desfile em passarela, festa maior do mundo. Que coisa!...”

Fonte: História do Samba - Editora Globo

Hilário Jovino Ferreira

Participante ativo da comunidade baiana do Rio de Janeiro, Hilário Jovino Ferreira — na foto com seus filhos — na realidade era pernambucano, criado em Salvador. Líder nato, iria fixar-se já adulto no Rio e não demoraria a se envolver com as coisas da música, transmitindo sua experiência aos novos amigos do Morro da Conceição, onde se instalou.

Aproximou-se do Rancho Dois de Ouro mas não gostou e fundou o Rei de Ouro, um dos muitos que criaria em sua vida de “ranchista”, dentro de moldes nordestinos e fez muito sucesso desde sua estréia, no Carnaval. Figura donjuanesca, indispôs-se com Tia Ciata por ter namorado sua filha Mariquita e fugido com Tia Amélia Kitundi, bonita mulata. amiga da baiana.

Hilário Jovino Ferreira, compositor, chegou ao Rio de Janeiro em 1872, trabalhando depois no Arsenal da Marinha, tendo comprado patente de tenente na Guarda Nacional. Morador do bairro da Saúde, reduto dos baianos no Rio de Janeiro, foi vizinho de Leôncio de Barros Lins, que fundara o Dois de Ouro, embrião de rancho.

Com a colaboração de Atanásio Calisto, Cleto Ribeiro Noela e Gracinda, fundou o Rei de Ouro, baseado na estrutura dos ranchos baianos. Foi ele quem sistematizou as figuras do mestre-sala e da porta-bandeira, adotadas depois pelas escolas de samba. Ajudou a fundar ainda o Rosa Branca e, mais tarde, o Botão de Rosa.

Freqüentador da casa de Tia Ciata, participou da formação do samba urbano, tendo entrado na famosa polêmica entre Sinhô e os baianos. Quando Sinhô escreveu Quem são eles?, respondeu com Não és tão falado assim; ao Fala meu louro, de Sinhô, retrucou com Entregue o samba a seus donos, pois considerava aquele samba ofensivo à Bahia, além de plágio.

Fontes: Enciclopédia da Música Brasileira - Art Editora PubliFolha; História do Samba - Editora Globo.

A Favela e a revolta de Canudos

Fotos: Cortiços foram demolidos, empurrando seus moradores para os morros da Zona Norte. A vida humilde era a marca dos migrantes que, chegados ao Rio, procuravam as favelas para morar.

Todos sabem do que se trata quando a palavra favela é mencionada, poucos, porém, são os que conhecem a origem do termo. E como foi escolhido para designar lugares onde a população de baixa renda se aglomera, morando sem pagar.

Arbusto típico do sertão nordestino, o faveleiro, mais popularmente favela, identificava também a elevação onde os seguidores de Antônio Conselheiro construíram suas casas. Era o Morro da Favela, no Arraial de Canudos, no sertão da Bahia, destruído pelo exército brasileiro, como descreveu Euclides da Cunha em Os sertões.

O cerco ao Morro da Favela, a resistência dos seguidores de Conselheiro aos soldados, transformaram em dura e longa campanha aquilo que se pensava ser fácil resolver com uns quantos tiros.

O que não se imaginaria é que a revolta de Canudos, um movimento de cunho basicamente religioso no Nordeste, viesse influenciar social e musicalmente o Rio de Janeiro, então capital da República, que se preparava para passar por grande reforma urbanística.

O engenheiro Pereira Passos, que ocuparia a Prefeitura carioca ao nascer do século XX, rasgando avenidas, demolindo habitações coletivas, transformando o núcleo central da cidade em pólo comercial e empurrando os menos favorecidos para a Zona Norte, foi, em última análise, com todo o seu modernismo, o pai das favelas cariocas.

Aquela região era habitada principalmente pela colônia baiana que vivia no Rio. As “tias” festeiras em seus casarões, reunindo os patrícios nas festas de santo ou profanas, geralmente obreiros humildes mas cheios de musicalidade, dominavam o centro da cidade, até as reformas exigirem suas saídas.

A solução foi procurar abrigo na Zona Norte e nos morros da região, onde os primeiros barracões começaram a aparecer. A campanha de Canudos teve conseqüências. Não se fez apenas a guerra, mas também o amor. Soldados acabaram por se unir a caboclas e voltar com elas para o Rio de Janeiro.

Sobreviventes resolveram recomeçar a vida na capital, e lá, a primeira orientação foi a dos patrícios que já moravam na cidade, a maioria nos morros. Os novos vizinhos lembravam sempre suas origens e volta e meia estavam falando no seu Morro da Favela e assim, sem se aperceberem, criaram a denominação que se tornou genérica. Favela passou então a ser o nome de todos os locais onde aquele tipo de habitação foi — por força das circunstâncias — adotado.

Fonte: História do Samba - Editora Globo

Cidade Nova, o berço do samba



Foto: O alargamento da rua da Carioca testemunhado pela fotografia de Augusto Malta, em 1906, mostra o verdadeiro canteiro de obras em que foi transformado o centro urbano do Rio de Janeiro no início do século XX. Os velhos sobradões, a maioria usada como cortiços que abrigavam dezenas de famílias, ou antigos armazéns, foram demolidos para dar lugar a largas ruas e avenidas que tornaram a região um pólo comercial, banindo os antigos moradores.

Na avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro de hoje, entre a estação da Estrada de Ferro Central do Brasil e o Trevo dos Pracinhas, existiu a Cidade Nova. Constituiu-se ali importante grupamento social, na forma definitiva que a cidade começou a assumir nos últimos anos do século passado e nos primeiros deste.

Ganhou importância na primeira metade do século XIX com o aterro das vizinhanças do Canal do Mangue e com as facilidades fiscais para as residências assobradadas nas ruas abertas pela Prefeitura. Que foi forçada a agir assim pela chegada da Corte portuguesa ao Rio, que abarrotou a cidade obrigando-a a se espraiar rumo aos subúrbios.

Mansões e bem-cuidadas chácaras testemunhavam a qualidade de vida dos moradores, que, porém, nos meados do século, se transferiram para a Zona Sul. Com isso, muitas das construções se tornaram moradias coletivas, abrigando a população de baixa renda, constituindo com o centro da cidade grande concentração habitacional operária.

Em 1872, o recenseamento apontava 26.592 moradores, muitos dos quais negros, alguns ainda escravos e seguramente africanos. É chegada no início do século XX a Reforma Pereira Passos que desmonta o sistema habitacional do centro da cidade. O abrigo mais próximo é a Cidade Nova, cuja densidade populacional cresce assustadoramente com a presença dos migrantes provindos da Bahia, que para lá se transferem.

Na união dos africanos com os recém-chegados baianos surgiria música naturalmente. Lima Barreto em seu livro Feiras e mafuás acrescenta ainda a presença de imigrantes italianos, que ele situa em patamar sócio-econômico mais baixo ainda, mas que devem com certeza — raça musical que é — ter contribuído com sua parcela nas festas e cantorias que a gente humilde armava para esquecer a tristeza.

“No começo do século” — dizia Lima Barreto — “era comum vê-la (a Cidade Nova) representada nas revistas teatrais do Rocio como sendo habitada sobretudo por pobre gente de cor na maioria dada a malandragem. Mas era um exagero (...).

Nos pontos de bonde da Senador Eusébio ou da Visconde de Itaúna já se viam, napolitanas robustas às dezenas, de grossos anciões de ouro nas orelhas, levando fardos de costura à cabeça, e pequenos empregados públicos, e tipógrafos, e caixeiros do atacado e do varejo.

Ao cair da tarde vinham as moças para a janela, e então as festinhas caseiras, típicas da época, não tardavam a começar, animadas pelos pianistas amadores, que sabiam de cor o ‘shotish’, a valsa e a polca da moda e aos domingos brilhavam nos salões do Clube dos Aristocratas da Cidade Nova”.

Este era o ambiente onde o samba carioca começava a nascer, processo que teria prosseguimento com os habitantes das favelas e posteriormente com os compositores chamados urbanos, que dele tomariam conhecimento atraídos por eventos como o Carnaval que se festejava na praça Onze (de Junho), domínio da Cidade Nova.

Projetada por Grandjean de Montigny, arquiteto que veio ao Brasil com a famosa Missão Francesa, a partir da ocupação da Cidade Nova pela gente humilde, a praça se tornaria um ponto de convergência desses novos moradores, local de encontro de capoeiras, malandros, operários e músicos de ranchos e blocos carnavalescos. Com a abertura da avenida Presidente Vargas rumo à Zona Norte do Rio de Janeiro, a Cidade Nova desapareceu.

Fonte: História do Samba - Editora Globo